1.9.14

O barco do criador do Poema Sinfônico (Liszt) e o sinfônico Poema de Tomas Tranströmer (1996).



GONDOLA LÚGUBRE N.° 2

I


Dois idosos, sogro e genro, Liszt e Wagner, moram no Canal Grande
juntamente com a mulher incansável casada com o rei Midas
que transforma tudo o que toca em Wagner.
O frio verde do oceano emana pelo chão do palacete.
Wagner está marcado, seu conhecido perfil de arlequim mais cansado do que nunca,
seu rosto é uma bandeira branca.
A gôndola está carregada com o peso da vida deles, duas idas e vindas e uma só de ida.

II

Uma janela do palacete se debate e as pessoas fazem careta para este traço repentino.
Lá fora, vê-se a gôndola do lixo, cujos remadores são dois bandidos, cada qual com um remo.
Liszt escreveu alguns acordes tão pesados que será preciso encaminhá-los
para análises no instituto de mineralogia de Padova.
Meteoritos!
Pesados demais para repousar, só conseguem afundar cada vez mais no futuro até
cair no ano dos camisas negras.
A gôndola está carregada com o peso das pedras empilhadas do futuro.

III

Uma espiada em 1990.
25 de março. Inquietação por causa da situação na Lituânia.
Sonhei que havia visitado um hospital enorme.
Sem médicos nem enfermeiros. Apenas pacientes.

No mesmo sonho, uma menina recém nascida
que pronunciava frases inteiras.

IV

Ao lado do genro, que é um homem do seu tempo, Liszt é um grão-senhor surrado pelo tempo.
Trata-se de um disfarce.
A profundeza, que prova e descarta diferentes máscaras, escolheu precisamente esta para ele –
a profundeza que quer adentrar nas pessoas sem jamais mostrar seu rosto.

V

O abade Liszt costuma ele mesmo carregar sua mala entre flocos de neve e raios de sol
e quando chegar a sua vez de morrer, ninguém estará lhe esperando na estação.
A aragem morna de um conhaque muito bem destilado leva-o para longe no meio de uma encomenda.
Ele sempre tem encomendas.
Duas mil cartas por ano!
O estudante que escreve as palavras erradas cem vezes antes de voltar para casa.
A gôndola está carregada com o peso da vida, simples e negra.

VI

De volta a 1990.

Sonhei que eu dirigi duzentos quilômetros em vão.
Então, tudo aumenta. Pardais do tamanho de galinhas
cantaram tão alto que obstruíram meus ouvidos.

Sonhei que desenhara teclas de piano
no tampo da mesa da cozinha. Eu as tocava, mudas.
Os vizinhos vieram ouvir.

VII

O cravo que ficou calado durante todo o Parsifal (mas ouvindo) enfim tem algo a dizer.
Suspiros… Seufzer
Quando Liszt tocar esta noite, manterá o pé embaixo no pedal
para que a força verde do oceano suba pelo chão e se infiltre em todas as pedras do prédio.
Boa noite, bela profundeza!
A gôndola está carregada com o peso da vida, simples e negra.

VIII

Sonhei que era o primeiro dia de aula e eu chegava atrasado.
Todos os alunos na sala tinham máscaras brancas diante do rosto.
Eu não soube dizer qual deles era o professor.

COMENTÁRIO: Na virada de 1882 para 1883, Liszt fez uma visita a sua filha Cosima e ao marido dela, Richard Wagner, em Veneza. Wagner veio a morrer alguns meses depois. Neste período, Liszt compôs duas peças para piano publicadas com o título “Gôndola da tristeza” (La lugubre gondola).

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