Dante Alighieri (1265 -1321) era homem de temperamento difícil: reza a lenda que estando na corte Bartolomeo Della Scala, aquele, lhe interpelara de seu temperamento aborrecido: “me divirto com os bobos da corte, estes me fazem rir... ao passo que homem tão sábio sempre tão mal humorado” ao que este lhe respondeu: “semelhante com semelhante”, conta Thomas Carlyle em Os Heróis. Conclua leitor, o que então, tal temperamento era capaz de fazer.
Dado importante foi quando esse mesmo poeta embirrento encontrou Beatriz: senhora dos seus sentidos, graça da sua lira e mística: Vida Nova, lugar de conversão para a maioria, nele, se deu na visão magnífica dessa mulher misteriosa, a um só tempo arquétipo de uma porção de alegorias, que a fecunda Idade Média soube atribuir. O que nos causa estupefação é o fato de ser a própria Beatriz o Céu para Dante: de fato Céu ali é um lugar geográfico, pelo estilo de organização pitolomaico-aristotélico e habitado por figuras ilustres: Santo Tomaz de Aquino, São Francisco de Assis, São Bento et caterva.
Entrementes, quando lemos :
“Se no fogo do Amor te resplandeço
se atendestes razões dei poderosas
Para ficar tua dúvida solvida:
Causa te fora a angustia afanosas.
Mas ante os olhos ora vês erguida
Outra ainda mais grave, que, por certo
Não fora só por ti desvanescida.
Já te hei bem claramente descoberto
Que não pode mentir alma ditosa
Pois da suma Verdade é sempre perto... ” :
Sabeis quem é para o Poeta aqui lugar de identificação com a suma Verdade... Estudiosos debruçam-se sobre a ousadia de Dante, como p. ex. nessa passagem citada; É como dizer: todo Céu e Teologia medieval tem naquela Mulher um lugar de “antropomorfização" do divino, por falta de palavra mais justa, de neologismo mesmo, daquela mulher especifica que é modelo, forma, arquétipo, de toda uma geografia que escapa a capacidade de representação para a simples inteligência humana: quem ou o que é próximo da Suma Verdade?
Giovanni Papani no seu magnífico Dante Vivo diz, entre uma porção de disparates, que só um florentino pode compreender a Divina Comédia: e nós, pobres mortais e soteropolitanos? Ele continua dizendo que o que levou a confecção desse sacro poema
“em que tem posto a mão o céu e a terra
e em que hei por tanto tempo emagrecido”
Canto XXV, Paraíso
Fora divida com a Virgem Santíssima, alias, outro lugar de compreensão desse fenômeno de persona em Beatriz, e que por isso fora escrito... Romance, Teologia e Mística, Poesia, strictu sensu, são focos de leitura para o caleidoscópico poema divina: de céu, inferno e imaginação, que, como no giro do objeto citado, ora se deixa ver mais claro ora, mais escuro: “Pape Satan, Pape Satan, Aleppe” Canto VII, v.1
Eis os versos que interessa ao A VOZ DO CEPA, o tal Hino à Virgem:
“Virgem Mãe, filha do teu Filho,
humilde e alta mais que qualquer criatura,
termo prefixado de eterno desígnio,
Tu és aquela que a natureza humana
Enobreceste de tal forma, que seu Criador
Não desdenhou-se fazer-se sua criatura.
Em teu ventre reacendeu-se o amor,
Por cuja calor na eterna paz
Assim germinou esta flor
Aqui és nós luz meridiana
De castidade; e em baixo, entre os mortais,
És fonte de vivaz esperança.
Mulher, és tão grande e tantos vales,
Que quem deseja graças, e a ti não recorre,
É como alguém que desejasse voar sem asas...”
Ou pela desastrosa tradução de J. P. X. Pinheiro:
“Virgem Mãe, por teu Filho procriada,
Humilde e sup’rior à criatura,
Por conselho eternal predestinada!
Por ti se enobreceu tanto a natura
Humana, que o Senhor não desdenhou-se
De se fazer de quem criou, feitura.
No seio teu o amor aviventou-se,
E ao seu ardor, na paz da eternidade,
O germe desta flor assim formou-se.
Meridiana Luz da Caridade És no céu!
Viva fonte de esperança
Na terra és para a fraca humanidade!
Há tal grandeza em ti, há tal pujança,
Que quer sem asas voe o seu aneloQuem graça aspira em ti sem confiança...”
Paraíso, Canto XXXIII Trad. J.P.Xavier Pinheiro
Onde se condensam pelo menos 1.500 anos de tradição cristã: aí o Magnificat, Lc. 1, 52: “Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes.” Bem como o dogma da Imaculada Conceição, a toda pulcra, a casa de Deus, Theotokos, mãe de Deus.
Toda originalidade do Canto repousa na inversão que de há muito já é inversa: o Filho que é Pai da sua Mãe que por sua vez fora gerado sem esperma, numa Virgem que, por isso, também fora concebida sem pecado: naquele temos o que só a fé valida e neste, o signo poético que encontra a mística e que, por sua vez, junto com o Je Vous Salet Marie, nos faz indagar: como isso foi possível?
Para o leitor moderno e pós-moderno ler a Commedia é tarefa importantíssima: é só não esquecer que o prêmio Nobel de literatura do séc. XX T. S. Eliot, no belíssimo Terra Desolada, trata sobretudo do problema do homem moderno sem Deus, seco, sem capacidade de contemplar o transcendente, de fruir na mística:
“Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola o
canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto
De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.”
O Enterro dos Mortos, Terra Desolada, T. S. Eliot
“O que é grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim” (Nietzche) diz o filosofo alguns séculos depois: o arco do poema que é o da vida liga o homem a tudo: a mística, na religião, dialoga principalmente com o homem porque é mistério e a pergunta pelo Homem é pergunta pelo seu sentido no vir-a-ser e não somente no posto aí. O Real nos inquieta tanto quanto o Encoberto.
Ainda no tema da Virgem, vale recordar o complicadíssimo Duns Scotus, quem demonstra, filosoficamente, sua virgindade: vejam depois caríssimos.
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